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Quebrando o Gelo

Pedro Paulo Cunha

Revista Scuba # 6, Agosto de 1996
© 1996 Pedro Paulo Cunha

Pode parecer estranho, maso mergulho em lagos congelados é bastante comum nos EUA e até já atraiu alguns brasileiros. Nos locais mais frios, abrir um buraco numa camada de 60 cm de gelo e aventurar-se debaixo dela pode ser a única opção de lazer para mergulhadores mais ativos durante os meses de inverno ou até mesmo uma obrigação para determinados profissionais como cientistas e equipes de resgate. E, por mais incrível que isso possa parecer, o mergulho pode ser muito interessante. Como o gelo impede a formação de ondas e correntes na maioria dos lagos e a água gelada reduz o ritmo biológico dos animais e vegetais submersos, a visibilidade em geral é muito boa, atingindo mais de 30 metros, criando boas oportunidades de exploração em lagos cheios de artefatos antigos e geralmente inacessíveis no resto do ano.

Para se mergulhar sob o gelo é preciso resolver dois grandes problemas: o acesso restrito à superfície (a entrada e a saída da água tem que ser feitas por um buraco de menos de 4 m2) e o frio intenso. O primeiro problema é o mais fácil de resolver. Como no mergulho em cavernas ou naufrágios, utiliza-se uma linha guia para indicar o caminho da saída. Sob o gelo, ao invés das tradicionais carretilhas com cabos de 2 mm, normalmente são usados cabos de nylon de 10 mm com cerca de 100 m de comprimento presos diretamente ao mergulhador através de um mosquetão - é a chamada linha de vida. A linha mais resistente é importante para permitir que o mergulhador seja puxado de volta ao buraco em caso de acidente e para evitar um desastre caso surjam correntes sob o gelo. Para evitar enroscos nas linhas, não é recomendado ter mais que dois mergulhadores na água de cada vez e, como proteção adicional, há sempre um mergulhador de segurança equipado com uma linha 30% mais longa esperando na superfície, pronto para entrar na água em caso de emergência. Para controlar todos estas linhas, a equipe deve contar ainda com pelo menos três tenders, um para cada mergulhador.

Já o problema do frio é mais complexo. Com a água a 2 ºC e o ar atingindo até -20 ºC, o risco de hipotermia (redução da temperatura do corpo que pode levar a perda de consciência ou mesmo à morte) ou de congelamento das extremidades do corpo (pés e mãos) é muito grande. Como exemplo, basta dizer que um mergulhador desprotegido na água morreria em menos de uma hora ! Nestas condições, a roupa úmida de neoprene à qual estamos acostumados é praticamente inútil. Mesmo quando "recheada" de água quente antes do mergulho, sua proteção não dura mais que 10 ou 15 minutos. A solução fica por conta das roupas secas, que tentam isolar completamente o corpo do mergulhador da água gelada. Com luvas e botas secas, capuz e uma vestimenta de proteção adequada por baixo (o chamado underwear), é possível permanecer na água por mais de três horas consecutivas. Se a este equipamento adicionarmos uma máscara full-face para proteger o rosto, um mergulho no gelo é quase tão confortável quanto um no Caribe.

Mas como nada é perfeito, a utilização da roupa seca tem suas dificuldades e exige treinamento especial e bastante prática, geralmente obtidos em um curso específico. Isto acontece porque, para manter o volume da roupa e evitar um barotrauma de roupa durante a descida, o mergulhador é obrigado a injetar ar em seu traje. Durante a subida, este ar se expande (lembra-se da lei de Boyle ?) e faz com que o volume da roupa cresça rapidamente, aumentando a flutuabilidade e, consequentemente, a velocidade de subida. E está armada a confusão. Se o mergulhador não se lembrar de eliminar o excesso de ar, a subida pode ser descontrolada e resultar em uma doença descompressiva, embolia ou mesmo um trauma causado pelo choque contra a placa de gelo. Outro problema comum acontece quando o mergulhador, inadvertidamente, levanta as pernas e deixa que o ar da roupa suba em direção aos pés. Neste caso, como a maioria das roupas possui as válvulas de saída de ar nos braços, é difícil voltar a uma posição normal sem uma manobra especial, aumentando o risco de uma subida fora de controle...

Reguladores comuns dificilmente funcionam nestas temperaturas e é preciso escolher modelos projetados ou adaptados especialmente para o mergulho em águas geladas, como os Poseidon. Embora não deixem o mergulhador sem ar, reguladores congelados travam em free-flow (escape contínuo e descontrolado de ar) e esgotam rapidamente o ar do cilindro. Mais uma vez em favor da segurança, são comuns as torneiras "H" ou "Y", que permitem a conexão de dois primeiros estágios a um mesmo cilindro e a manutenção de um pequeno "estoque" de reguladores, para substituir os congelados na superfície.

O frio também é um problema para quem permanece na superfície. Mesmo quando o ar está um pouco mais quente, o vento aumenta muito a sensação de frio (é o chamado wind chill) e o risco de congelamento. A equipe de apoio (e os próprios mergulhadores antes e depois do mergulho) deve estar vestida adequadamente, com botas e luvas impermeáveis (invariavelmente formam-se poças d’água em volta do local de mergulho) e calças, casacos, capuzes e óculos escuros para a neve.

Como muito pouca luz penetra pela neve e pelo gelo, as lanternas são essenciais. A lista de equipamentos deve incluir também aqueles necessários para abrir o buraco na camada de gelo: brocas, pás, serras manuais ou a gasolina, barras metálicas, pitões, etc. Estes ítens mais específicos são em geral fornecidos pela escola ou operadora.

PL_0035.jpg (31152 bytes)A aventura começa com a carga dos veículos para a "expedição". Considerando-se a quantidade de equipamentos e o número de pessoas (6 a 10), são necessárias pelo menos duas vans ou pickups. Uma vez na beira do lago, antes de prosseguir para o local de mergulho (normalmente no centro do mesmo), é importante analisar a espessura da camada de gelo para saber se ela suportará o peso dos veículos. Acidentes em que veículos se aventuram pela placa de gelo para terminarem debaixo d’água são relativamente comuns. Aí vem a parte mais trabalhosa: o buraco de acesso. Com o auxílio de pás, remove-se a neve da região onde será feita a abertura (a pelo menos 20 m dos veículos para evitar que uma fratura no gelo os leve para o fundo do lago). Em seguida, utiliza-se uma broca de gelo para abrir um furo de cerca de 20 cm de diâmetro a partir do qual serão cortadas as laterais de um buraco em forma de triângulo com aproximadamente 2 m de lado. Os cortes são feitos com serras manuais ou movidas a gasolina. Além de ser o menos trabalhoso, este formato permite que três mergulhadores permaneçam simultaneamente sentados na borda ou dentro d’água. Completados os cortes, o plug (como é chamada a peça de gelo cortada) é empurrado para debaixo do gelo e fixado por pitões metálicos.

Enquanto uma parte da equipe abre o buraco, outra estica todas as linhas de vida (para garantir que elas não possuam nós) e prende uma das pontas a pitões fincados no gelo para evitar que elas inadvertidamente escapem das mãos dos tenders. Este grupo também cava longas flechas na neve que servem para facilitar a orientação dos mergulhadores na volta e permitir a entrada de alguma luz. O esforço nestas tarefas de preparação é tão grande que ao final todos estão de mangas arregaçadas a -10 ºC !

Com tudo pronto, é a hora da primeira dupla se preparar para o mergulho. Juntamente com o mergulhador de segurança, eles trocam suas roupas pelo underwear e pela roupa seca, que deve ser cuidadosamente ajustada para evitar a entrada de água pelos selos das mãos e do pescoço. Já sentados na beira do buraco, eles colocam seus coletes, prendem a linha de vida a um arreio especial, verificam se todos os equipamentos estão em ordem e se é possível manuseá-los com as luvas. Os reguladores, no entanto, só podem ser testados na água, para evitar o congelamento.

Debaixo d’água, as atividades são as mesmas do mergulho comum: a exploração de carros, navios ou aviões no fundo, a busca por objetos antigos, a fotografia ou a observação da vida local. Alguns peixes passam o inverno em um estado de animação suspensa e podem até ser segurados com a mão. Para os mergulhadores que não se contentam com pouco, o mergulho sob o gelo permite algumas atividades únicas como amarrar entre si as linhas de pescadores desavisados (eles passam minutos em suas cabanas achando que pegaram o maior peixe do mundo), a "caminhada na lua" (onde o mergulhador fica em pé, equilibrando-se de cabeça para baixo sob o gelo e preso pela flutuabilidade da roupa seca) ou o esqui-subaquático (quando, após uma "caminhada na lua", quatro ou cinco tenders puxam velozmente de volta ao buraco o mergulhador que faz o que pode para não se desequilibrar e "cair para cima").

A comunicação com a superfície é feita através de puxões na linha de vida, como mostra a tabela abaixo. A linha deve ser mantida sempre tensionada e os puxões devem ser longos e fortes para que enroscos ou movimentos do mergulhador não sejam interpretados como falsos sinais (um bom tender sabe qual tensão manter para que os sinais sejam compreendidos facilmente sem atrapalhar os movimentos do mergulhador). Além disto, todos os sinais devem ser respondidos utilizando-se o mesmo número de puxões.

Puxões

Do tender (superfície) para o mergulhador

Do mergulhador para o tender (superfície)

Um

OK ?

OK !

Dois

Mais linha ?

Mais linha !

Três

Não há mais linha !

Não é preciso mais linha.

Quatro ou mais

Emergência, retorne !

Emergência, puxe-me de volta.

Como no mergulho em cavernas, qualquer imprevisto (como a falha de um regulador ou o alagamento da roupa seca) implica no encerramento imediato do mergulho. O frio também pode interromper o mergulho a qualquer instante pois, além de torna-lo desagradável, ele dificulta o manuseio de equipamentos (como simplesmente segurar o regulador na boca) e afeta a capacidade de julgamento. Extremidades geladas, falta de destreza nas mãos e tremores são sinalis para que se inicie o retorno à superfície.

Os procedimentos de emergência são relativamente simples. Se o mergulhador por alguma razão se sentir impossibilitado de retornar ao buraco de saída, bastam alguns sinais na linha de vida para que o tender o puxe de volta. Se a linha de vida ficar enganchada em alguma coisa, nunca se solte dela; se o seu companheiro não perceber o que aconteceu, o tender enviará o mergulhador de segurança para seguir sua linha assim que perceber que você não responde aos sinais. A pior situação, é claro, é quando o mergulhador se solta da linha de vida e não consegue encontrar a saída. Neste caso, ele deve subir imediatamente e permanecer em uma posição vertical com os braços apoiados no gelo. Em poucos minutos o mergulhador de segurança estará na água e, após extender sua linha até o final, iniciará varreduras circulares próximo ao gelo, fazendo com que a linha se prenda no mergulhador em apuros. O importante é nunca correr o risco de se afastar demais do buraco tentando localiza-lo por conta própria !

PL_0036.jpg (30996 bytes)Na subida, basta controlar o ar na roupa e ficar atento para não bater a cabeça no gelo. Uma vez no buraco, os tenders ajudarão os mergulhadores a sentarem na beira do buraco e removerem o equipamento. É importante trocar de roupa imediatamente, prevenindo uma hipotermia. Em seguida, a não ser que este seja o último mergulho do dia, os mergulhadores que acabaram de sair da água assumirão posições na equipe de apoio (tender ou segurança), permitindo que os outros façam seus mergulhos.

No final do dia, depois que o último mergulhador sair da água, ainda resta uma tarefa: fechar o buraco para evitar que alguma outra pessoa caia e se afogue. Isto é feito puxando-se de volta o plug para o seu local original e enchendo a junta com neve, que congelará no local, "soldando" a placa de gelo. Finalmente, são colocados alguns galhos e fitas plásticas para sinalizar o local. Não cumprir estas normas de segurança pode implicar em até seis meses de prisão em alguns estados americanos.

Se você quiser se aventurar no gelo, já na sua próxima viagem inscreva-se em um curso de utilização de roupa seca e, em seguida, procure uma das muitas escolas que oferecem esta modalidade fora do Brasil. No meio tempo, você pode ir treinando, enchendo sua pia de água e gelo e mergulhando o rosto para se acostumar - só não deixe seus amigos verem isto !

 

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