"Quase que diariamente encontramos sereias de feições quase humanas, embora não tão bonitas quanto pintadas pelos artistas" - assim Cristovão Colombo descreveu em seu diário de 1493 as criaturas que encontrou ao chegar pela primeira vez à América, mais precisamente na costa do que séculos depois seria conhecido como o estado da Flórida, nos Estados Unidos.
O West Indian Manatee (Trichechus Manatus) pertence à ordem Sirenia e é parente próximo do peixe-boi da Amazônia, do manatee da Africa e do Dugong da India e um primo distante dos elefantes. Mamífero, vive tanto nas águas salgadas do Atlântico quanto nas águas doces dos rios do sul dos Estados Unidos. Quando adulto pesa cerca de 500 kg e mede por volta de 3 metros de comprimento, tendo sido encontrados exemplares com mais de 4,5 m e 1200 kg. Vegetariano e com um imenso apetite, ele passa de 6 a 8 horas por dia se alimentando de qualquer tipo de planta aquática - o consumo diário chega a 15% do próprio peso !
Ao contrário de outros animais, machos e fêmeas tem o mesmo tamanho e aparência. Seu corpo lembra vagamente o de uma baleia e termina em uma cauda horizontal, usada para propulsão. Na parte dianteira, encontramos nadadeiras semelhantes a remos e por baixo delas, as mamas. No focinho, narinas pequenas são fechadas por válvulas quando o animal submerge, evitando a entrada de água e reabertas quando o animal volta à superfície para respirar, a cada 3 minutos, embora este intervalo possa chegar a mais de 15 minutos quando em repouso. Os olhos são muito pequenos e atrás deles encontramos os ouvidos, sem nenhum tipo de orelha, que são usados para ouvir a sua própria "linguagem": uma série de apitos usados para manter mãe e filho unidos em águas com pouca visibilidade. Só possuem dentes na parte posterior da boca e utilizam os lábios para colher as plantas do fundo.
São animais pacíficos e tímidos, vivendo cerca de 50 anos quando em liberdade (em cativeiro, morrem em poucas semanas). Parecem lentos à primeira vista, mas podem percorrer quase 100 km em um único dia.
As fêmeas são férteis desde os 5 anos de idade e dão cria a um filhote de cerca de 40 kg em intervalos que variam de dois a cinco anos, após gestações de 11 a 13 meses. A copulação é um evento de grupo, com uma fêmea e vários machos. Essencialmente solitários, as famílias dos manatees são formadas por mãe e filho, pois embora no final do primeiro mês os filhotes já possam se alimentar por conta própria, eles são amamentados por mais de dois anos.
Hoje o manatee é um animal em extinção, em grande parte graças à ação de seu único inimigo natural: o homem. Durante séculos eles foram mortos pela sua carne, ossos e gordura, com populações inteiras sendo eliminadas de outros habitats.
Desde séculos atrás, no inverno os manatees saem do mar e buscam as águas mais quentes dos rios da Flórida, pois são muito sensíveis a quedas de temperatura (em águas abaixo de 15oC, a morte é praticamente certa em menos de uma semana). Mesmo assim, durante o século XX eles começaram a se aventurar cada vez mais pelas águas frias mais ao norte, fugindo da escassez de comida. A explicação não é muito difícil: com o desenvolvimento crescente na costa leste americana, foram instaladas diversas usinas termo-elétricas que tem como subproduto imensas quantidades de água quente, possibilitando a subida dos manatees. Hoje, com a desativação gradual deste tipo de usina, eles vem diminuindo a amplitude de suas excursões.
Ainda que livres da caça a mais de 20 anos, os manatees tem uma população estimada de pouco mais de mil exemplares na Flórida. Após longos anos em declínio, ela é hoje estável, embora alguns biólogos ainda achem que em menos de 30 anos eles estarão extintos. As mortes são causadas por diversos fatores, naturais ou não: o clima frio (como em 1984 e 1989 quando mais de 50 morreram), as marés vermelhas (como em 1982) ou o esmagamento contra o fundo dos rios por barcaças de transporte. O acidente mais comum é o atropelamento por lanchas, já que eles se movimentam lentamente pouco abaixo da superfície: embora não sejam mortos pela colisão, os hélices causam cortes profundos nos seus mais de 2cm de pele; com o tempo as feridas inflamam e causam uma morte lenta e dolorosa. Pelo menos 90 % dos animais tem uma marca de hélice, com a maioria deles tendo três ou mais colisões em sua vida. Afinal, na Flórida são mais de 600 lanchas por manatee...
No passado, vários morreram presos nas tubulações das usinas, mas hoje eles já conhecem bem os perigos das grandes obras do homem e aprenderam até como usar eclusas das vias fluviais, se divertindo com as ondas formadas. E os operadores, compreensivos, esperam que todos voltem antes de encerrar o expediente, o que significa algumas vezes mais de três horas de trabalho adicional à espera dos animais.
Curiosamente, embora o homem seja o causador de sua extinção, ele é hoje a sua última chance de salvação. Considerada uma espécie protegida desde 1967, o manatee é hoje alvo de uma legislação bastante rigorosa: além da restrição à caça, é proibido perseguir ou pertubar os animais. Vinte e quatro áreas da região são consideradas santuários ecológicos e a entrada de mergulhadores ou barcos é proibida. O mais interessante é que o governo americano faz com que a lei seja realmente cumprida: toda a região é sinalizada, diversos barcos especiais (sem hélices dentro d'água e de pequeno calado) patrulham a região em alta velocidade e as multas (aplicadas com frequência) chegam a ser assustadoras para os padrões brasileiros: a morte de um manatee pode custar ao infrator mais de US$ 20.000 e até 5 anos de prisão !
A mobilização pela defesa dos manatees é impressionante e envolve o governo, empresas, instituições de pesquisa e milhares de pessoas sem nenhuma ligação direta com a área. Existe até mesmo um telefone especial para comunicação de acidentes com manatees - o socorro é enviado imediatamente de barco, carro ou helicóptero e os corpos dos manatees mortos são usados em pesquisas. Diversos biólogos se dedicam exclusivamente ao seu estudo, usando técnicas sofisticadas como rastreamento por satélite para entender melhor seu comportamento. Utilizando as marcas de hélices como identificação, 70% da população já foi catalogada e 50 espécimes são constantemente monitorados através de transmissores especiais presos às suas caudas.
O mais interessante é que qualquer um pode mergulhar ao lado dos manatees - durante horas, é possível observa-lo calmamente, toca-los, abraça-los e até ser carregado por eles, ao contrário do que acontece na maioria dos encontros (geralmente fugazes) com mamíferos marinhos não domesticados. Entre novembro e abril (em especial em janeiro e fevereiro), quando os animais saem do golfo do México em busca de comida e de águas mais quentes, basta uma viagem até a pequena cidade de Crystal River, a 130 km de Orlando (onde fica a Disney World), que adotou o animal como símbolo e principal atração turística.
Próxima ao Golfo do México (a oeste da I-75, na US-19 entre Gainesville e Tampa), Crystal River fica no delta do rio de mesmo nome e atrai milhares de mergulhadores por ano, graças a população residente de cerca de 300 manatees. A cidade é bem servida de operadoras de mergulho, hotéis e restaurantes, mas mesmo assim o melhor é ir durante a semana, quando os rios estão praticamente desertos e os serviços são certamente mais dedicados. Algumas operadoras fornecem barco e guia (a melhor opção para uma primeira visita), enquanto outras alugam um pequeno bote com motor de popa e um mapa, suficientes para quem já conhece a área e deseja ter mais liberdade para explorar. Equipamento ? O mais simples possível e alugado nas lojas locais, embora nem sempre no melhor estado de conservação: máscara, nadadeiras, snorkel e uma roupa de neoprene de 1/8" são suficientes (equipamentos autônomos comuns não são recomendados pois os manatees se assustam muito facilmente com as bolhas).
O segredo é ancorar o barco na margem do rio e entrar na água calmamente, sem fazer barulho. Dentro dela, a temperatura é confortável (cerca de 22oC embora a ambiente possa cair abaixo de 0oC no inverno) e a visibilidade nos locais onde os manatees podem ser encontrados é em geral longe de perfeita. No fundo, você não vai encontrar as cores do Caribe e o verde é a cor predominante, mas por outro lado, não existem ondas ou correntes e a água é potável.
Normalmente após alguns minutos aparecerão os primeiros animais e, com um pouco de paciência, você pode ganhar sua confiança e então começar a acaricia-los - quando eles gostam, fazem acrobacias como "parafusos" para mostrar e "pedem mais" (a região inferior ou "barriga" é especialmente sensível). Os manatees por sua vez evitam de todas as formas uma colisão que possa machucar um mergulhador, emboras contatos acidentais sejam inevitáveis.
O encontro é uma experiência única, mais impressionante que um mergulho com golfinhos nas Bahamas por se dar em um ambiente natural e pelo fato de os animais não serem treinados. A maioria das pessoas considera o manatee adorável e a sensação de liberdade é incrível.
Mas nunca tente se aproximar dos manatees, espere sempre que eles iniciem o contato, pois uma perseguição pode levar o animal a se esconder em uma região de água mais fria, o que pode ser fatal. Lembre-se também que a região é constantemente patrulhada e que a expressão "pertubar" na lei é bastante vaga, ficando a interpretação a cargo do policial que presencia os incidentes.
Mas o mergulho com os manatees não é a única atração da área. Crystal River está na região de um fenômeno geológico conhecido como Ocala Uplifit: a pressão de lençóis freáticos ligados aos estados da Georgia e o Tenessee rompe o solo no norte da Flórida para alimentar os rios da região. A passagem pela rocha calcária é um processo de filtração natural, o que faz com que a água seja mais limpa que em qualquer oceano, com a visibilidade atingindo normalmente mais de 100 metros em alguns rios. Pontos como o Rainbow River (a 40 minutos de Crystal River e geralmente incluído no mesmo "pacote" que o mergulho com os manatees), podem oferecer mergulhos espetaculares, não pela fauna ou flora do rio mas pela visibilidade que pode ser considerada uma das melhores do mundo.
Os preços são bastante acessíveis, ficando na faixa de US$ 60.00 por pessoa, incluindo 2 mergulhos (um com os manatees e outro no Rainbow River) e uma noite em um dos hotéis da cidade. Os mergulhos nos rios da região estão disponíveis durante todo o ano, mas o mergulho com os manatees está sujeito à sua migração para o rio e às leis de proteção locais. Normalmente os manatees podem ser encontrados entre outubro e março, mas é importante confirmar com uma operadora local antes de partir.
Por fim, estando na área, vale visitar o parque de Ginnie Springs; em passeios pelos rios podem ser encontrados artefatos préhistóricos. Toda a região é recheada de cavernas submersas e nunca é demais lembrar: nunca entre em uma caverna submersa sem estar adequadamente treinado e equipado - o mergulho em cavernas exige técnicas muito além das ensinadas em cursos não especializados.
Hoje, ainda podemos ter dúvidas se os longos meses no mar ou o abuso dos barris de rum nos porões de suas caravelas fez com que Colombo e sua tripulação confundissem os manatees com sereias. Mas é indiscutível que parte da culpa pela extinção destes animais é do homem e que somente ele tem condições de evita-la.
Como chegar em Crystal River
Saindo de Orlando, siga na direção nororeste pela Florida Turnpike até o seu final na I-75. Vire à direita em direção ao norteaté a saída da Hwy 44 em Wildwood. Vire à esquerda na Hwy 44 e siga por ela até o final na Hwy 19 em Crystal River.
O parque de Ginnie Springs fica próximo à cidade de Gainesville, na I-75.
Em nossa última viagem utilizamos os serviços da Talley's Pro Dive em Crystal River.
Endereços Úteis
Talley's Pro dive
744 U.S. Hwy. 19
Box 124 - Crystal River, FL 32629
(001)(904)795-2776
Bay Point Dive Center
300 U.S. Hwy 19
Crystal River, FL 34428
(001)(904)563-1040
American Pro Dive
715 S.E. Hwy 19
Crystal River, FL 34429
(001)(904)563-0041
Plantation Inn / Marina Dive Shop
9301 W. Fort Island Trail
P.O. Box 1093
Crystal River, FL 32623
(001)(904)795-5797
Ginnie Springs Inc
7300 NE Ginnie Springs Rd
High Springs, FL -32643
(001)(904)454-2202