Introdução ao Mergulho Técnico

Revista SUB # 10, Abril de 1995
© 1996 Pedro Paulo Cunha & Flávio C. Conte

Costa da Flórida, 18 metros de profundidade. Dois mergulhadores estão parados, atentos aos seus cronômetros e a anotações em planilhas plásticas. Eles parecem o cruzamento de mergulhadores de um filme de ficção científica com um catálogo de uma loja de ferramentas, tamanha a quantidade de equipamentos. Cada um carrega 6 cilindros, 5 reguladores, roupa secas, coletes compensadores duplos, três lanternas e uma infinidade de equipamentos de emergência, como bóias, cabos, carretilhas e sinalizadores. Ainda lhes restam 3 horas antes de poderem retornar à superfície após um mergulho de 30 minutos no naufrágio do Waka Q, a 87 metros de profundidade.

Na costa da Califórnia outra dupla de mergulhadores nada calmamente junto ao fundo a 45 metros de profundidade, com câmaras fotográficas preparadas aguardando a melhor oportunidade de fotografar uma espécie rara de crustáceo. Enquanto esperam, discutem com a equipe na superfície as condições metereológicas. O mais estranho é que eles não soltam bolhas nem possuem nenhum tipo de cabo ligando-os à superfície, já que estão utilizando equipamentos de respiração de circuito fechado e sistemas de comunicação de última geração.

Ao mesmo tempo no Canadá um barco retira do mar algo parecido com o robô da série "Perdidos no Espaço". Quando a parte superior se abre, surge um mergulhador, vestindo apenas uma calça jeans e uma camiseta e contando entusiasticamente o que viu no fundo a 280 metros de profundidade a poucos minutos. Descompressão ? Nenhuma, já que o mergulhador usava uma roupa de mergulho a uma atmosfera (ADS).

O que estes mergulhadores tem em comum ? Eles fazem parte de um grupo extremamente restrito mas que ganha força a cada dia nos Estados Unidos e no mundo: o dos mergulhadores técnicos. Muito além dos limites tradicionais do mergulho recreativo, este grupo vem a cada ano extendendo os limites da exploração submarina, desenvolvendo ou adaptando novos métodos e equipamentos para explorar cavernas e naufrágios ou realizar estudos científicos a profundidades e por tempos considerados inviáveis a poucos anos.

Sem sombra de dúvida, o mergulho técnico é uma atividade potencialmente perigosa, exigindo treinamento, equipamento e equipes de suporte especiais. Mas a maioria dos mergulhadores já percebeu que a fronteira dos 30 m não é a linha divisória entre a vida e a morte e que mergulhos com ar podem ser realizados com segurança até mais de 50 m, como é comum na Europa.

A faixa do mergulho técnico está entre 50 e 90 m de profundidade, onde os mergulhadores aceitam riscos controlados (como mergulhos descompressivos) em busca de naufrágios e cavernas fora dos limites do mergulho recreacional. Abaixo de 90 m encontra-se o domínio dos exploradores, a elite dos mergulhadores que aceitam altos riscos para atingir lugares em que "nenhum homem jamais esteve".

Os equipamentos utilizados no mergulho técnico são bastante diferentes daqueles utilizados no mergulho recreacional ou comercial. O ponto mais importante é a redundância, já que qualquer falha em um mergulho a 80 m pode ser fatal. Assim, são comuns múltiplos cilindros, reguladores, lanternas, profundímetros e até mesmo máscaras (já que um mergulhador que perdesse sua máscara não seria capaz de realizar suas paradas de descompressão por não poder ler os instrumentos). O equipamento inclui ainda carretilhas, lift-bags, linhas de descompressão, roupas secas, máscaras full-face, analisadores de gás, detetores Doppler, dispositivos de comunicação e coletes compensadores especiais, montados nos cilindros ao invés do tradicional jacket. Com tudo isto, é comum um mergulhador totalmente equipado carregar mais de 100 kg de equipamento !

Alguns mergulhos exigem o uso de equipamentos ainda mais sofisticados como DPVs (diver propulsion vehicles ou scooters) e equipamentos de respiração de circuito fechado controlados por computador. Os mais "radicais" utilizam até mesmo roupas rígidas de uma atmosfera, mini-submarinos, ROVs (remotely operated vehicles - robôs controlados remotamente e equipados com câmaras de TV) e estações de trabalho (computadores especializados) idênticas às usadas para os efeitos especiais do filme Jurassic Park para o processamento de dados de topografia de cavernas ou naufrágios.

O mergulho técnico profundo frequentemente utiliza misturas respiratórias especiais de modo a aumentar a segurança do mergulho, permitir o acesso a profundidades maiores e reduzir os tempos de descompressão. Normalmente, os mergulhadores amadores respiram ar, uma mistura de aproximadamente 21% de oxigênio (O2) e 79% de nitrogênio (N2). As misturas especiais utilizam hélio (He) e neon (Ne), além de quantidades varíaveis de O2 e N2 e são preparadas de acordo com a necessidade de cada mergulho levando em conta fatores como narcose pelo nitrogênio, toxidade de oxigênio, síndrome nervosa das altas pressões e tempo de descompressão.

Misturas de N2 e O2 em porcentagens diferentes das do ar são chamadas de Nitrox, as de He e O2 de Heliox e as He, O2 e N2 de Trimix (tanto o Heliox quanto o Trimix são usados em mergulho comercial há mais de 50 anos). Oxigênio puro é utilizado para acelar a descompressão. No entanto, o alto risco de convulsões provocadas pelo efeito tóxico do oxigênio em altas pressões parciais faz que sejam necessárias diversas precauções adicionais de segurança.

Assim, em um mergulho a 85 metros, cada mergulhador utiliza tipicamente 6 cilindros: dois com a "mistura de fundo" (normalmente Trimix), dois com misturas para as fases de descida, subida e descompressão (normalmente Nitrox 36 e Nitrox 50), um com O2 puro para descompressão (quando este não é fornecido através de mangueiras a partir da superfície) e um de argônio, para inflar a roupa seca (evitando uma grande perda de calor, já que o hélio contido no Trimix é um péssimo isolante térmico).

Com tantas variáveis, as tabelas de descompressão comuns são praticamente inúteis e os mergulhadores técnicos utilizam programas como o Abyss e o MiG para geração de misturas gasosas e tabelas de descompressão específicas para cada situação. Infelizmente, ainda não existem computadores de mergulho capazes de calcular os parâmetros de descompressão para misturas como Heliox e Trimix.

Da mesma forma que no mercado tradicional, já se formaram diversas agências certificadoras com o objetivo de garantir a qualidade do treinamento e a segurança dos mergulhadores. A IANTD (International Association of Nitrox and Technical Divers) é a maior delas. A ANDI (American Nitrox Divers International) é a maior incentivadora do mergulho com Nitrox, enquanto que a PSA (Professional Scuba Association) é a pioneira em mergulho fundo com ar. A TDI (Technical Diving International) é a caçula do grupo, mas promete agitar o mercado com o peso de seus fundadores: Bret Gilliam, Bill Hamilton, Mitch Scaggs, Rob Palmer e John Crea.

Embora o currículo oferecido por estas agências ainda esteja longe e uma padronização (uma das discussões mais quentes durante a tek.95), todos eles tem um ponto em comum: a garantia da segurança através de equipamentos redundantes, planejamento adequado e auto-suficiência (um conceito novo para a maioria dos mergulhadores recreacionais, já que a maioria deles aprendeu a depender de seu companheiro em situações de emergência).

Nos Estados Unidos existem diversos locais visitados frequentemente por mergulhadores técnicos. Entre os naufrágios estão: o Andrea Doria (um famoso navio de passageiros que naufragou após uma colisão em 1956 e hoje repousa a 73 m de profundidade), o Wilkes Barre (cruzador americano da 2ª guerra - 77 m), o USS Monitor (o primeiro encouraçado da marinha americana que afundou em 1862 - 71 m) e o U-Who (submarino alemão da 2ª guerra ainda não identificado com precisão - 71 m). Além dos naufrágios, o principal ponto de atenção são as cavernas submersas nos EUA, no México, nas Bahamas, na Itália e na França, atingindo profundidades de mais de 270 m.

Considerando-se os riscos as dificuldades associados à penetração de cavernas e naufrágios, não é difícil imaginar a preparação e o suporte necessários para mergulhos deste tipo ...

Infelizmente, o custo para se tornar um mergulhador técnico é bastante elevado: pelo menos US$ 3.000 de investimento em treinamento e mais cerca de US$ 7.000 de equipamento. Os mergulhos também ainda são bastante dispendiosos: pelo menos US$ 50,00 só pela recarga dos cilindros em mergulhos com Trimix.

De qualquer forma, o mergulho técnico provou que veio para ficar, reunindo diversos grupos que vinham realizando mergulhos fora dos limites do mergulho recreacional nos bastidores. O reconhecimento da atividade facilita o trabalho de todos e muito em breve, muitos estarão se beneficiando de novas técnicas e equipamentos. Afinal, o octopus e o manômetro foram criados pelos mergulhadores de cavernas ...

 

O Mergulho Técnico no Brasil

O Brasil possue um grande potencial para o desenvolvimento do mergulho técnico. Suas águas de média profundidade favorecem o uso do Nitrox e existem diversos naufrágios profundos a explorar, sem contar na imensa quantidade de cavernas.

Embora alguns mergulhadores isolados tenham feito cursos nos EUA no passado, somente agora foi formado um grupo organizado. Visando a exploração das cavernas da região de Bonito (MS), o CEBRAPEHS capacitou um grupo de 5 mergulhadores Trimix (2 dos quais instrutores de mergulho técnico) e deve iniciar os mergulhos na região ainda no primeiro semestre. Este é o primeiro projeto do CEBRAPEHS utilizando Trimix, outros projetos incluem mergulhos em naufrágios no Brasil e nos EUA e o treinamento de novos mergulhadores técnicos no Brasil.

A partir deste número a Revista Sub terá páginas dedicadas ao mergulho técnico e durante o próximo Subaqua haverá um ciclo completo de palestras sobre esta atividade, coordenadas por Maurício Henriques. Provavelmente durante o segundo semestre de 1995 o CEBRAPEHS estará promovendo o primeiro evento de mergulho técnico do Brasil, reunindo os maiores especialistas da área do Brasil e possivelmente alguns dos exterior.